No Rio de Janeiro, o tiro pode vir do céu. As forças policiais do Estado têm intensificado, nos últimos anos, o uso de helicópteros como plataforma de tiro durante operações em regiões densamente povoadas, deixando um rastro de terror e violações de direitos. A partir de uma investigação iniciada em 2018, coletamos e produzimos evidências sobre a utilização de aeronaves policiais na capital do Estado, com foco no Complexo da Maré.
Utilizando ciência de dados, informações governamentais inéditas, investigação de campo e técnicas de arquitetura forense, identificamos padrões na utilização deste aparato bélico na cidade durante os anos de 2018 e 2019. Onde os tiros são disparados? Qual é a dinâmica desse tipo de operação policial? Quais são os seus impactos sobre os direitos fundamentais das populações, sobre as comunidades atingidas e sobre a vida das pessoas? Nesta investigação, buscamos responder estas perguntas.
Este site é melhor visualizado em computadores desktop.Em 2018, o Estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal militar, com os poderes da segurança pública do estado sob comando das Forças Armadas. No dia 20 de junho, uma operação da Polícia Civil e do Exército foi realizada no Complexo da Maré. Oficialmente, o objetivo era cumprir 23 mandados de prisão e checar informações do setor de inteligência.
Foram mobilizados mais de 100 policiais e militares, quatro veículos blindados e dois helicópteros. Ninguém foi detido, mas sete pessoas foram mortas. Entre elas, Marcus Vinícius da Silva, um adolescente de 14 anos que vestia o uniforme escolar quando foi alvejado. Os nomes dos outros jovens mortos na ocasião são Levi, Kelvin Duarte, Francisco Felipe, Paulo Henrique, Igor Barbosa e outra pessoa não identificada.
Vídeos registrados por moradores em 20 de junho mostram o helicóptero sobrevoando a Maré em círculos. Trata-se de um padrão comum a outras operações, no qual a aeronave ronda os alvos em solo efetuando disparos para cercá-los, enquanto as forças terrestres avançam, aumentando o cerco.
Analisando as imagens da operação, foi possível estimar a altura do helicóptero. Na foto abaixo, ele encontra-se a aproximadamente 35 metros do solo, o equivalente a um prédio de 11 pavimentos.
A tragédia de 20 de junho está relacionada a outra morte, que ocorreu dias antes em uma favela próxima ao Complexo da Maré. No dia 12 de junho de 2018, o policial civil Ellery de Ramos Lemos, chefe de investigações da Delegacia de Combate às Drogas, foi executado em Acari. Dois dias depois, um delegado foi à televisão anunciar uma "caça" aos responsáveis.
Segundo a polícia, a operação visava prender suspeitos do assassinato de Ellery. Mas os indícios apontam um padrão de operação que usualmente ocorre após a morte de policiais, cujo objetivo não é deter criminosos. Tais operações costumam ser marcadas por extrema violência, letalidade e violações de direitos. Estas operações violentas após a morte de policiais são tão frequentes que receberam uma designação própria: são conhecidas como "operação vingança".
O uso de helicópteros como plataforma de tiro é um dos elementos do uso extremo da força presente nesse tipo de operação. Nos anos de 2018 e 2019, identificamos pelo menos nove casos onde helicópteros foram utilizados como plataforma de disparo em áreas residenciais durante ações policiais com características evidentes de uma "operação vingança".
A vivência de episódios violentos deixa marcas na memória. Operações policiais violentas e frequentes produzem múltiplos traumas na vida cotidiana dos moradores das favelas da cidade, gerando danos psicológicos e emocionais. A presença de helicópteros nas operações aumenta fortemente o terror, o medo e a carga traumática sobre a população.
Coletamos e analisamos postagens públicas em redes sociais, buscando tornar visíveis os impactos psicológicos e emocionais de operações policiais envolvendo helicópteros. A coleta dos dados foi feita em perfis, páginas e grupos públicos. Numa análise preliminar de 17 mil tweets contendo palavras que remetiam a operações com helicópteros entre 2018 e 2019, notamos que, além das constantes referências aos tiros e ao próprio helicóptero, as postagens falam frequentemente de temas como casas, escolas e crianças.
O mesmo acontece com postagens e comentários em páginas e grupos públicos no Facebook, onde o medo e a preocupação com familiares e com as crianças que estão na escola também são recorrentes. Boa parte dessas postagens é feita no momento da operação, expressando medo, revolta e preocupação.
Na operação do dia 20 de junho de 2018 no Complexo da Maré, a página de Facebook do Coletivo Maré Vive faz sua primeira postagem às 06h00 da manhã, saudando a favela.
Poucas horas depois, inicia-se uma sequência de comentários que dura o resto do dia, relatando sob diversas perspectivas a operação policial que resultou na morte do estudante Marcus Vinicius, 14 anos, e de mais seis jovens, como vimos, além de diversos outros impactos narrados abaixo.
Reproduzimos abaixo alguns comentários, respeitando a escrita original e a ordem em que se sucederam. Incluímos apenas informações entre colchetes, para auxiliar no entendimento de certos termos.
"Bala comendo solta na comunidade"
"Polícia no Pinheiro, helicóptero atirando muito pra baixo"
"Uma adolescente foi baleado aqui em frente a linha vermelha estava com roupa de escola"
"Helicóptero deu tiro DENTRO do Ciep [escola]. Temos professores e 600 crianças aqui, pelo amor de Deus!!!!"
"E sempre na hora que nossas crianças estão na escola . Muito triste isso"
"eles voltaram de novo dando muito tiro aqui na frente da minha casa meu filho de 1 ano acordou gritando com um tiro q pegou na laje aqui de casa"
"Estou em SP muito preocupado meu filho está na escola próximo ao pontilhão na baixa"
"To de frente o Brizolao do Pinheiro, é desesperador os gritos das crianças..."
"Uma criança baleada tá sendo atendida aqui na vila do João"
"Nossa o caveirao aéreo dando muito tiro meu deus moro perto do Colégio as crianças bricando na quadra quando ouviram foi muita gritaria que Deus proteja elas. Escola do amanhã"
"E sempre assim,e que se foda que está em baixo! Meu filho e da creche menino maluquinho,que por sinal e de telha como muitas casas aqui na maré! Que proteção e essa que eles dizem da pra sociedade?como estão essas crianças essa momento no meio do tiroteio?e como ficamos nos mães que não conseguimos nem sair de casa pra tentar tirar nossos filhos dessa chuva de bala."
"n recomendo sair... Aqui na b1 [uma das principais ruas da Maré] mt tiro ainda... Helicoptero sem piedade..... Algumas maes buscaram as crianças na escola do salsa..mas ainda e mt perigoso"
"O chão da b1 tá todo furado eles atiraram pra baixo sem pensar em ngm esses fdp"
"Aqui nos prédios do Pinheiro eles passam atirando e o povo gritando pra saírem das ruas e janelas. Ta um desespero, na clínica da família todos no chão, as crianças e idosos"
"estava domindo com meu esposo estou grávida de 3 messes tomei um grande susto pos so vie eles já dento do meu quarto pediram pra tirá tudo do luga minhas roupas o colchão está duto revirado ainda foi um susto muito grande pois nunca tinha passado por isso"
"Eu tô na escola com as crianças no chao"
"Acabei de receber um áudio de uma mulher que se encontra no UPA e relatou que chegou uma criança baleada na barriga , e um moto táxi , os “ canas “ não deixam a ambulância chegar ao local para transferir a criança."
"Assustador ver os buracos de rajada no chão! Fui buscar minha irmã na creche e fiquei super nervosa de ver as marcas de tiro, que n estavam direcionados pra boca não. Era no meio da rua!! Que Deus nos proteja e conforte às famílias de vítimas, mto doloroso tudo isso. Estão nos matando todo dia".
O terror causado pelos tiros que vêm do alto, pelo barulho e pelos voos rasantes dos helicópteros são frequentes nas postagens. Além de voarem baixo e próximo às casas, o helicóptero conhecido como “Caveirão aéreo”, “Águia” ou “Sapão” faz um barulho intenso e perturbador, que se tornou tragicamente icônico no filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola.
Notamos, na análise das postagens das redes sociais que inúmeras referências ao barulho do helicóptero estão associadas ao sono e ao despertar. Além das menções de moradores no Twitter, o tema também é abordado nas postagens de policiais envolvidos nas operações aéreas, que compartilham vídeos ostentando as armas durante os voos (como as que acompanham esta investigações) e postam memes sobre o tema.
Abaixo, alguns exemplos dos relatos de moradores no Twitter, selecionados entre centenas de mensagens. Nas mensagens, foram realizados pequenos ajustes ortográficos e de escrita e optamos por não revelar a identidade dos autores, que postaram as mensagens em perfis pessoais.
- Inferno de cidade na qual você acorda com helicóptero dando rasante e tiros! Parabéns aos envolvidos! O governador genocida está dando show.
- Pior forma de acordar é com helicóptero sobrevoando e dando tiros na frente da sua janela. Já acordei me tacando no chão, porque para ele me acertar não é difícil.
- Às 5:40, acordei com o caveirão aéreo e, desde então, é tiro, caveirão, Bope, Choque, soldado com arma pela rua na frente do caveirão e jipes com exército. [...] Só o que helicóptero gasta de combustível dava para pagar professor.
- Bom dia para quem dorme e acorda tranquilo. Porque, para nós que acordamos com barulho do águia, caveirão e dos tiros, NÃO TEM BOM DIA!
- Hoje cedo acordei no susto com barulho do águia da polícia. Parecia que estava caindo aqui em casa. Agora, com barulho de tiro. Difícil...
- Privilégio de morar em favela é ser acordado por helicóptero e tiros
- Despertador de pobre é acordar com tiro ou helicóptero tremendo tudo 😴
- Despertador no celular é para os fracos. Os fortes acordam 1 hora antes com tiros e barulho de helicóptero.
- Eu tava sonhando e tinha perguntado uma coisa no sonho. E na hora que a pessoa ia responder, começaram vários tiros, helicóptero e não vi a resposta. Rio de Janeiro continua lindo.
- Estava sonhando com polícia entrando na minha casa. E me acordo com barulho do águia. Não acredito 😟
- Acabei de sonhar com helicóptero e tiro. Aí acordo com esses tiros estranhos.
- Eu sonhei que tomava tiro do helicóptero da PM e acordei todo travado, cheio de dor onde tinha levado os tiros.
A força policial do Estado, exercida sem respeito aos direitos dos moradores, transforma a favela num território de exceção. Os relatos mostram os impactos psicológicos e emocionais gerados por esta condição de viver em um lugar sem abrigo, que pode ser violado e invadido de forma violenta a qualquer momento. O bairro e a rua, mas também a escola e a própria casa ficam vulneráveis. Até mesmo o que seria mais íntimo e restaurador, como o sono e o sonho, é invadido pelo medo e pelo horror que atravessa a vigília. A violência psicológica dessa condição se expressa nos relatos em que os moradores narram o quanto estão embaralhadas as próprias fronteiras entre sono e vigília, entre sonho (ou pesadelo) e realidade.
Abaixo, destacamos algumas mensagens identificadas em redes sociais.
- Hoje seis da manhã começou a dar muito tiro e do nada veio o helicóptero. Achei que estava sonhando mas era real mesmo. O c* trancou quando ouvi o helicóptero em cima da minha casa.
- Helicóptero está baixinho... uma hora dessa meu sono estava gostosinho. Estava até acreditando que os tiros eram no meu sonho.
- Eu estava sonhando que estava no helicóptero. Acordei quando deu tiro, aí que eu vi que não é nada disso.
- Eu estava sonhando que tinha acontecido um roubo perto do meu curso e acordei com barulho de tiro e helicóptero. Mais um dia no Rio de Janeiro.
- Eu sonhei que estava em um tiroteio. Fui acordado com barulho de tiros e um helicóptero sobrevoando.
- Estava mesmo sonhando com tiro e guerra... aí passa esse helicóptero, eu achei que estava fazendo parte do meu sonho... agora perdi o sono 🤦🏽♀️
A interrupção e invasão do sono e do sonho pela violência cotidiana do Estado converte a capacidade restauradora e libertadora do sonho em um pesadelo sem trégua, terrivelmente similar à realidade cotidiana. É importante lembrar que interromper o sono e o sonho significa interromper as funções essenciais de restauração do organismo e do psiquismo, envolvendo a elaboração de memórias e acontecimentos traumáticos, fundamentais para a saúde física e mental.
As informações sobre o uso de helicópteros em operações policiais não são públicas. Porém, por meio de registros obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), análise de material publicado na imprensa, informações coletadas por organizações sociais e raspagem de dados de redes sociais, foi possível levantar dados sobre o uso das aeronaves.
Em abril de 2019, solicitamos à Polícia Civil e a à Polícia Militar a listagem de operações de combate ao tráfico de drogas realizadas nos anos de 2018 e 2019 que tiveram apoio de helicópteros. A resposta da Polícia Civil chegou em junho, com um documento em formato PDF que veio incompleto. Neste material de 16 páginas, que estava todo numerado, faltava a página de número 15 que, aparentemente compreendia os dados referentes ao período entre novembro de 2018 e março de 2019.
Abrimos um novo pedido solicitando as informações da página ausente e enquanto este trâmite acontecia, no dia 9 de agosto de 2019, o Governo do Estado publicou uma resolução que coloca sob sigilo por 15 anos, o manual que detalha de que forma os helicópteros poderão ser usados em operações. Mesmo sem relação com o pedido em questão, este fato foi citado entre as justificativas para as subsequentes recusas da Polícia Civil em fornecer informações.
Em reação aos pedidos de LAI realizados pela pesquisa, o governo do estado classificou como sigilosas dados básicos sobre operações da Polícia Civil realizadas com helicóptero até novembro de 2024.
Tudo isso demonstra que, apesar de haver mecanismos legais de acesso a informações, quando se trata de dados referentes a atuações mais específicas das forças de segurança, os tomadores de decisão podem não somente negar os dados de maneira arbitrária, como também tornar ainda mais opacos todos os processos, mesmo que estas informações sejam de interesse público.
Curiosamente, porém, em julho de 2020, a Polícia Militar respondeu os pedidos de acesso à informação protocolados em agosto de 2019. Tais dados foram incoporados na pesquisa, que se valeu de levantamentos em outras fontes para preencher as lacunas das informações oficiais.
O uso de helicópteros na Polícia Civil remonta ao início dos anos 1970. Já na Polícia Militar, ele é mais recente, começando a partir de 2008. Juntas, as duas polícias concentram a maior parte da frota de aeronaves do Estado.
Em 2016, o governo do Rio de Janeiro dispunha de um total de 21 aeronaves e a maioria delas era utilizada pelas forças de segurança do Estado. Segundo reportagem do Jornal O Globo, "nove são da PM, três da Polícia Civil, quatro pertencem à Casa Civil, quatro ao Corpo de Bombeiros uma à Secretaria Estadual de Saúde".
Segundo o inspetor policial e ex-chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Marcello Barros, em artigo publicado em site especializado, o helicóptero Bell Huey - hoje em operação nos céus do Rio de Janeiro e conhecido como Caveirão Aéreo - foi construído em 1967 e foi comprado inicialmente pelo exército norte-americano, sendo utilizado durante a Guerra no Vietnã entre 1968 e 1971 e tendo acumulado mais de 2 mil horas de vôo. Décadas depois, a aeronave foi modernizada e hoje está sob comando da Polícia Civil, com prefixo PR-FEC.
Atualmente, tanto a Polícia Civil, quanto a PMERJ possuem um helicóptero modelo Bell Huey. A Polícia Civil adquiriu este modelo de aeronave em novembro de 2008 por R$ 8 milhões, em resposta à morte do policial Eduardo Mattos, que estava a bordo de um helicóptero da Polícia Civil e faleceu ao ser atingido por um disparo na cabeça, durante uma operação no Morro do Adeus.
Como se vê, embora os helicópteros sejam compreendidos como uma ferramenta "imbatível", sua utilização também pode colocar a própria tripulação em risco, não sendo raro casos de acidentes, alguns inclusive fora de confronto. Na última década, pelo menos oito policiais faleceram em decorrência de quedas de helicópteros policiais no Rio de Janeiro.
Um caso que se tornou emblemático, ocorreu em 17 de outubro de 2009, quando pela primeira vez um helicóptero da Polícia Militar foi abatido, enquanto sobrevoava o Morro São João, no Engenho Novo, Zona Norte da cidade. Três agentes faleceram: Marcos Stadler Macedo, Edney Canazaro de Oliveira e o cabo Izo Gomes Patrício.
Em 2013, um helicóptero da Polícia Civil caiu na Zona Portuária durante um treinamento de rotina e cinco policiais ficaram feridos. Em 2016, houve uma segunda queda de um helicóptero Esquilo da PMERJ durante uma operação na Cidade de Deus, zona oeste da cidade. O helicóptero estava com o pagamento da manutenção atrasado há mais de um ano e no acidente quatro policiais faleceram. Por fim, em 14 de janeiro de 2019, a terceira queda de um Esquilo ocorreu na Baía de Guanabara, causando a morte de um piloto.
Em entrevista a uma revista especializada em fevereiro de 2016, atiradores da Polícia Civil admitiram não usar mecanismos de estabilização para disparos com certos armamentos embarcados em aeronaves.
O mecanismo em questão é uma corda elástica ("bungee cord") que prende o armamento à aeronave, estabilizando assim os disparos e reduzindo danos colaterais aos objetivos oficiais da operação.
Reproduzimos abaixo o trecho da página 39 da revista Warriors, com grifo nosso, que trata da não utilização da Bungee cord pela Polícia Civil do Rio de Janeiro no Caveirão Aéreo:
"Tendo por base a observação do modus operandi de outras unidades estrangeiras, foi colocada a questão referente à utilização ou não do Bungeecord para estabilizar as armas. Ao que os atiradores responderam que apenas usam este sistema para as armas mais pesadas do tipo FAP-IMBEL. Nas restantes armas mais ligeiras como o Armalite AR10 e Imbel M964, dois tipos de fuzis, são utilizadas de forma livre sem qualquer sistema de retenção e apoio, isto porque os atiradores embarcados necessitam de mobilidade e muitas das vezes pode haver a necessidade, por alguma razão, de mudar rapidamente de lado do helicóptero e a prisão da arma a um sistema fixo iria dificultar e/ou atrasar esta manobra, bem como os alvos em terra efetuam movimentos rápidos e imprevisíveis e o atirador necessita de ser flexível e ter disponibilidade física assim como da arma”.
O "caveirão aéreo" já faz parte do imaginário da população carioca, especialmente entre moradores de favelas. Esse dispositivo bélico, junto com os caveirões terrestres, faz parte de uma demonstração de força do aparato governamental, que ganhou ainda mais destaque no contexto da eleição do Presidente Jair Bolsonaro, com suas bandeiras de flexibilização do uso de armas. Porém, antes mesmo disso, os helicópteros policiais serviram de plataforma política para policiais.
O Comandante Adonis se tornou conhecido quando foram veiculadas imagens de uma operação sob sua responsabilidade, na Favela da Coreia em 2012. O episódio se tornou conhecido como "Caçada ao Matemático", por conta do codinome de um dos traficantes mais procurados do estado à época. Os vídeos do helicóptero disparando a esmo em uma área densamente povoada, mesmo sem visibilidade adequada, levaram ao afastamento do Comandante.
O fato não tirou Adonis da cena pública. Pelo contrário. Em 2014, ele se apresentou como candidato a deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD) e durante a campanha usou miniaturas dos helicópteros oficiais para se promover (veja o vídeo acima). Com 4.353 votos, o comandante não foi eleito.
Mais recentemente, em 2018, quem surfou nessa onda, foi o então candidato a governador Wilson Witzel, cujas palavras de ordem eram "acabar com a corrupção" e "atirar na cabecinha" de criminosos. Já no primeiro ano de seu mandato, em 2019, participou de uma operação da Polícia Civil em Angra dos Reis, que fez uso de helicópteros. Com a presença do governador na aeronave, os policiais buscavam traficantes de drogas em uma mata. Nada acharam, porém, durante a empreitada, atiraram em uma tenda colocada por uma igreja evangélica.
Os tiros vindo de helicópteros, como dito, não ocorrem de forma homogênea em todo o Estado. Nenhum dos 881 autos de resistência registrados no primeiro semestre de 2019 no Estado Rio de Janeiro aconteceu em áreas dominadas por paramilitares.
Em 2019, o Rio de Janeiro bateu recorde de mortes causadas por policiais, desde o início da contagem oficial, em 1998.
Em 2016, após a realização de uma operação policial na Maré com mais de 12 horas de duração e diversas violações de direitos humanos, representantes da Associação de Moradores da região, organizações locais e a Defensoria Pública deram entrada em uma Ação Civil Pública (ACP) para garantir a vida e os direitos básicos dos moradores durante as ações das forças de segurança na Maré. Naquela noite, a juíza concedeu uma liminar judicial determinando o fim da operação e proibindo a realização de operações policiais no turno da noite.
A partir daquela liminar, a Defensoria Pública moveu uma ação mais ampla. Graças a ela, em julho de 2017, houve uma decisão do juiz da 6ª Vara da Fazenda Pública, que solicitou à Seseg (Secretaria de Segurança do Estado) um plano de redução de riscos e danos para o enfrentamento a violações de direitos humanos decorrentes de intervenções policiais na Maré.
A Defensoria pretendia que a medida funcionasse como um "projeto piloto", a ser expandido posteriormente, mas em fevereiro de 2018, a intervenção federal na segurança pública foi decretada e durou até o fim daquele ano e inviabilizou que o piloto fosse pra frente, mas não anulou o que havia sido sancionado pela ACP.
Depois da morte de Marcos Vinícius, em junho de 2018 na Maré, a Defensoria Pública pediu à Justiça a proibição do uso de helicópteros em operações. O defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública, descreveu assim o contexto da petição: “Essa situação da utilização de um helicóptero para efetuar disparos de arma de fogo a esmo, em locais urbanos densamente povoados, enquanto se movimenta em alta velocidade é absurdamente temerária, não se tem notícia de algo parecido em qualquer lugar do mundo. A probabilidade de atingir pessoas inocentes é imensa, além do terror psicológico que causa aos moradores e interrupção das atividades na comunidade e prejuízos materiais”. O pedido foi negado.
Somente em outubro de 2018, por conta de outra decisão judicial no contexto da Ação Civil Pública, a extinta Secretaria de Segurança do Governo do Estado baixou uma norma com protocolos de atuação para operações policiais. Entre as normas estabelecidas, estava a proibição do disparo a partir de helicópteros em modo rajada. A ACP também estabeleceu protocolos de atuação para as forças terrestres, tais como
Em outubro de 2018 foi elaborada uma Instrução Normativa da Secretaria de Estado de Segurança Pública que estabeleceu as diretrizes para uso de aeronaves, enfatizando seu uso prioritário para "suporte e apoio das operações" nas seguintes circunstâncias:
"I- para utilização do sistema de imageamento aéreo com intuito de fornecer detalhamento em tempo real da situação operacional através de rádio e imagem visando identificar antecipadamente as características de envolvidos e suspeitos durante a operação;
II- transporte de equipe especializada;
III - resgate e salvamento;
IV - em apoio às equipes terrestres, visando garantir sua segurança no local da operação".
O artigo sétimo trata do emprego de disparos a partir das aeronaves. Os capítulos do artigo que deixam mais evidentes sobre como os militares podem operar estão descritos abaixo:
"II - que o emprego de arma de fogo embarcado em aeronave somente seja utilizado quando estritamente necessário para legítima defesa dos tripulantes, equipes terrestres e população civil; (...)
IV - em caso de emprego de arma de fogo embarcado, seja utilizada apenas arma de fogo longa e calibre que respeite as normas técnicas dos órgãos reguladores;
V- no disparo de arma de fogo efetuado pela tripulação do interior de aeronave, sejam efetuados no modo intermitente, observando o número mínimo de disparos para o atingimento do objetivo almejado."
Em 2019, a Justiça suspendeu a Ação Civil Pública que estabelecia medidas para atuação das forças policiais na Maré. Depois disso e de mais um episódio de violência de Estado no Complexo da Maré a organização Redes da Maré realizou uma ação para visibilizar o terror vivido por moradores e trabalhadores do Complexo da Maré. Mais de 1000 cartas escritas por moradores da Maré foram entregues ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Neles os moradores, entre eles muitas crianças, relatavam através de desenhos e textos o horror e as violações ocorridas em decorrência das operações policiais. Estes relatos foram anexados ao processo que serviu de base para cobrar o restabelecimento de protocolos mínimos para a atuação policial no local, conquistados com a ACP.
Acesse o Github do projeto para acesso aos dados e códigos utilizados.
Esta é a primeira edição deste relatório web, finalizada em 14 de abril de 2021.
Em breve, a versão em PDF do relatório será compartilhada aqui.
Fontes dos dados
Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)
Defezap
Fogo Cruzado
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
Observatório da Intervenção
Pista News
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
Redes da Maré
Este projeto foi idealizado em 2017 pelo MediaLab.UFRJ e a Agência Autônoma como parte das colaborações envolvendo investigações guiadas por dados inspirado em metodologias da arquitetura forense. O trabalho contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Fundação Ford.
Realizado por MediaLab.UFRJ e Agência Autônoma, em parceria com Redes da Maré, Fogo Cruzado, Pista News, Witness e Rede LAVITS.
Coordenação: Fernanda Bruno, Adriano Belisário e Paulo Tavares
Análise e visualização de dados: Adriano Belisário
Assistência de pesquisa: Ingra Maciel e Debora Pio
Desenvolvedor web: Marlus Araújo
Email de contato: contato@medialabufrj.net